De maneira emocionada, a futura ministra de Mulheres, Família e Direitos
Humanos, Damares Alves, detalha nesta entrevista à Universa, e pela primeira
vez, a série de estupros dos quais foi vítima quando era criança. Nas últimas
semanas, a pastora evangélica e sergipana teve falas e propostas políticas
altamente criticadas --uma delas, envolve uma extemporânea "bolsa estupro", a
ser concedida para mulheres que aceitassem ter o filho, fruto da violação.
No entanto, nesta entrevista, esses assuntos não serão tratados. Damares achou
por bem falar do que viveu, primeiro, por motivos psíquicos que só a ela
competem. Segundo, porque eles explicam, em parte, sua escolha por dedicar boa
parte de sua atuação como advogada na defesa de crianças violentadas e, por
último, porque os episódios envolvendo o médium João de Deus trouxeram o
assunto novamente à pauta.
Damares revela que foi violentada por dois pastores da igreja que ela e a família
frequentavam. Aos 10, ela pensou em se matar e conta que subiu em uma
"O primeiro abusador foi às vias de fato. Fui estuprada por dois anos. Ele dizia
que eu era 'enxerida', que a culpa era minha e que, se falasse, meu pai morreria",
diz a futura ministra. O segundo, que a machucou quatro vezes, em uma delas,
ejaculou em seu rosto. "Falar sobre isso me dói. Me expor custa demais. Mas
entendo que preciso passar a mensagem de que sobrevivi."
A senhora pode detalhar as violências pelas quais passou?
Fui abusada por dois religiosos. Da primeira vez, foi um missionário da igreja
evangélica que frequentávamos na época, em Aracaju (SE). Ele foi enviado de
uma outra igreja para a minha cidade e ficou hospedado na minha casa. Chamo
ele de 'falso pastor' porque era um pedófilo fingindo ser pastor. Ele foi às vias de
fato comigo. Eu falo abuso, mas foi estupro. Foram várias vezes em um período
de dois anos. Começou quando eu tinha seis anos e a última vez que o vi estava
com oito. Uma das cenas que lembro bem é: eu estava dormindo no meu quarto,
que era ao lado do de meus pais. Estava sonhando que segurava uma coisa
quente e, quando, abri os olhos, estava segurando o pênis desse homem. Senti
pavor, medo e dor. Da primeira vez que me estuprou, ele me colocou no colo,
olhou na minha cara e disse: 'Você é culpada, você me seduziu, você é enxerida'.
Ele dizia que seu eu contasse para o meu pai, ele (o pastor) o mataria
O segundo religioso fez a mesma coisa?
Ele também frequentava nossa casa. Me tornei uma presa fácil porque depois do
primeiro abuso tinha muito medo e achava que o primeiro tinha contado para o
segundo. Ele não foi às vias de fato. Me recordo de quatro momentos. Passava a
mão no meu corpo, me beijava na boca, me colocava no colo. Uma vez
ejaculou no meu rosto.
Seus pais não sabiam?
Já adulta soube que meus pais descobriram. Mas, na época, nada foi feito. E eu
também não falava nada, porque tinha medo de que ele matasse meu pai
(Damares se refere ao primeiro estuprador). Fiquei refém daquele predador.
Acontece com a maioria das meninas abusadas: algumas não falam porque são
ameaçadas, outras, porque têm medo da reação do pai e da mãe e há as que
acham que ninguém vai acreditar. Mas eu emitia muitos sinais. Infelizmente,
ninguém notou.
Que sinais eram esses?
Me tornei uma menina triste. Antes dos abusos eu sentava no primeiro banco da
igreja, cantava feliz, dançava. Depois, não cantava do mesmo jeito, não dançava.
Virei uma criança retraída. Tinha pesadelos e gritava à noite. Eu tinha dois
ambientes de proteção: a família e a igreja. O terceiro devia ser a escola, mas
quando cheguei nela já estava destruída. Acharam que eu era assim, e fui tratada
como uma menina tímida. Os três ambientes falharam comigo. E não podia falar,
o silêncio foi imposto. Passei por um duplo abuso e quero que você escreva sobre
isso. O objetivo de contar minha história é porque sei que milhões de meninas e meninos têm essa dor profunda. Vou lembrar sempre do que
aconteceu.
Por que diz que a família e a igreja falharam?
Quando meus pais descobriram, foram conversar com religiosos da igreja e
tiveram a orientação de não falar comigo, mas de orar. Naquela época não se
falava de sexo com filhos, minha mãe nunca falou de menstruação. Trocaria anos
de oração por um abraço ou uma conversa quando ela descobriu. Os pais
precisam fazer isso: ler os sinais, prestar atenção nos filhos, perguntar se a
criança quer contar alguma coisa, perguntar se alguém fez um carinho esquisito.
Se alguém tivesse me dito para gritar, eu teria gritado.
Como soube que seus pais descobriram o que aconteceu?
Aos 24 anos, vi em um jornal que um pastor foi preso por abusar de uma criança.
Identifiquei o homem, era o mesmo que tinha abusado de mim. A foto me
incomodou muito. Fui para o quarto chorando. Minha mãe disse que sabia
porque eu chorava, que era por causa do homem que estava no jornal. Não sei
exatamente, eles devem ter flagrado ou eu devo ter dito algo enquanto estava
sonhando. Eles descobriram, foram falar com ele, e ele fugiu. Fiz uma cobrança
de memória e lembrei que ele, de fato, sumiu da nossa vida.
Depois dos estupros, a senhora disse que tentou se matar. O que
aconteceu?
Era tanta dor e sofrimento que resolvi interromper minha vida. Peguei veneno de
rato e subi no pé de goiaba, onde ia para chorar. Ia lá para não ser vista. Quando
subi com o veneno, vi meu amigo imaginário, o personagem que é Jesus, de
barba, roupa branca. O saquinho caiu da minha mão e desisti. Estão me
ridicularizando por ter falado isso, mas se vocês não acreditam, problema é de
vocês. Tem criança que vê duende, que fala com fadas. Eu vi Jesus. Percebo que
há uma discriminação religiosa sórdida que está banalizando o sofrimento de
uma criança.
A senhora fala da escola como um lugar que poderia tê-la protegido,
mas falhou. Aulas de educação sexual, no seu caso e no de milhões de
crianças poderiam ajudar, correto (no mês passado, o presidente
eleito Jair Bolsonaro disse que "quem ensina sexo é papai e mamãe e
ponto final")?
Sim. Sou a favor da educação sexual. Vou conversar com o Ministério da
Educação sobre isso. A escola vai ter que ter um papel importante para combater
abusos contra crianças. A primeira ideia é capacitar professores para identificar
violências contra os alunos. Mas é preciso respeitar as especificidades de cada
idade. E a família deve ser ouvida e consultada. Se a família não quiser que o filho
aprenda sobre o assunto, vai ser responsabilizada por isso.
Mas não é perigoso deixar essa decisão final na mão da família sendo
que em 65% dos casos os abusadores de crianças fazem parte do
grupo familiar?
A escola tem o caminho para saber se a família é um lugar de proteção. Teria de
ser analisado. Mas, repito, a família tem que ser ouvida e consultada.
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