Bolsonaro usou "cola" com algumas palavras na palma da mão durante a sabatina no JN. (Foto: Reprodução/TV Globo)
Jair Bolsonaro parecia mais manso, embora visivelmente tenso e desconfortável, em sua volta ao Jornal Nacional quatro anos depois de espernear e mentir em rede nacional sobre um suposto kit gay elaborado pelos adversários para destroçar as famílias brasileiras. Começava a pavimentar ali a sua via até a Presidência.
Quem esperava, dessa vez, um presidente à caça de comunistas, debochando da ausência de um dedo de seu adversário, chamando meio mundo energúmeno e mandando os entrevistadores procurar vacina na casa de suas mães podia até estranhar o figurino.
Diante de William Bonner e Renata Vasconcellos não estava o candidato que prometia mudar tudo isso que estava aí de 2018, mas o presidente em defesa de tudo o que estava no roteiro de questionamentos.
O presidente agora joga na retranca. E a mentira só mudou de endereço.
Em 40 minutos de entrevista, os responsáveis pelo anunciado embate do ano pareceram esquecer em casa alguns temas-chave para o eleitor médio dimensionar de maneira clara a desgraça que é o atual governo.
Rachadinha, orçamento secreto, cheques suspeitos, mansões, liberação de verbas sem critério para compra de equipamentos com indícios de superfaturamento pela Codevasf, kits robóticos adquiridos por valores acima do praticado pelo mercado em escolas sem estrutura básica, farra de dinheiro para municípios com suspeitas de fraudes na Saúde e, mais do que tudo, a volta do Brasil ao mapa da fome.
Tudo isso que faz de Bolsonaro o comandante-em-chefe de um governo de mitômanos, incompetentes e cleptocratas passou longe de ser exposto como deveria para o grande público do horário nobre.
O noticiário detalhado segue um privilégio de quem lê as notas de bastidores de portais e veículos impressos.
Os entrevistados, Bonner especialmente, preferiram fazer caras e bocas em tom de ironia e/ou voz lamentosa ao lembrar, por exemplo, da postura do presidente diante das vítimas da pandemia —reforçando a antipatia de quem passou os últimos três anos e meio chamando a emissora que recebia o agora presidente em busca da reeleição de “GloboLixo”.
A certa altura pareciam fazer cosplay de diretores da escola ameaçando botar de castigo o menino mal criado. Faltou dizer "que coisa feia, seu Jair".
Só que os pontos a serem atingidos eram os mais óbvios. Um estudante que tivesse acompanhado à distância as agruras do atual governo não faria diferente.
Não tinha nada ali que Bolsonaro já não tivesse estudado para dar a resposta mais do que ensaiada para doutor não reclamar.
Para isso bastava contar a verdade até a metade e justificar até o fim o injustificável, como quando se eximiu dos números recordes de queimadas na Amazônia dizendo que tudo queima neste mundo.
Ou quando minimiza os índices de devastação afirmando que os países que o criticam têm menos matas preservadas do que o Brasil.
Bolsonaro passou longe de ter de explicar em que momento esse país que preserva o quanto pode e só queima por força de natureza permite que um indigenista e um jornalista britânico escalados para denunciar o avanço da atividade predatória sejam trucidados como caça à luz do dia.
O problema de uma entrevista-embate com um presidente como Bolsonaro é que ele fala diante da plateia que a bola em campo é quadrada e se defende dos olhares de reprovação dizendo que é preciso respeitar a sua opinião.
Como é preciso respeitar, disse ele para a plateia, a meia dúzia de aloprados que estende cartazes pedindo intervenção militar no país. Tudo liberdade de expressão, ele garante – assim como garante que respeitará o resultado das urnas desde que elas sejam limpas e transparentes a seu favor.
A condicionante muda todo o enredo do compromisso falsamente assumido em público.
Os apresentadores pareceram ficar sem reação ao ouvir Bolsonaro inventar um novo verbete para a palavra “centrão”. Em sua cabeça, e agora na de quem conseguiu convencer em rede nacional, “centrão” não é a reunião da nata do fisiologismo parlamentar que hoje gerencia um mundo de recursos via emenda de relator em troca de apoio, mas o time de parlamentares ao centro do espectro ideológico que dá a ele garantia de governabilidade.
Do contrário, e sem essa dobradinha com a ala supostamente civilizada do Congresso, Bolsonaro garante que seria apenas um...ditador. Da mesma forma os apresentadores ficaram sem reação ao ver Bolsonaro dizer, sem franzir a testa, que era mais fácil alguém se contaminar com a Covid trancado em casa do que saindo às ruas. Chamar à razão poderia levar bem mais do que 40 minutos.
O presidente também buscou um novo significado para a palavra compaixão ao dizer que ele sim se preocupou com as vítimas da pandemia ao clamar que todo trabalho importa e não era justo impedir que os brasileiros buscassem o seu sustento fora de casa. Sim, mas naquela ocasião, no auge da pandemia, sair de casa era o mesmo que assumir o risco de morrer asfixiado.
E o lockdown que ele jura ter acorrentado um país inteiro só foi implementado em alguns cidades e por pouco, pouquíssimo tempo. O resto foi sabotagem patrocinada pelo governo federal.
Bolsonaro tentou bater o bumbo sobre a compra das vacinas, que ele só comprou tardiamente, após pressão da mata do PIB, mas perdeu uma grande chance de explicar de onde tirou a ideia, repetida à exaustão, de que o melhor imunizante para o vírus que já ceifou 682 mil vidas era se contaminar.
Renata Vasconcellos preferiu lembrar do dia em que Bolsonaro imitou uma pessoa morrendo asfixiada aos risos, como se pedisse que o entrevistado tivesse modos. Ele chamou a diabrura de resistência ao "politicamente correto".
O presidente também se congratulou pelo Auxílio Brasil – sem que ninguém lhe perguntasse por que só agora, às portas das eleições, resolveu engordar o benefício para R$ 600. E mentiu ao dizer que não tardou a colocar o benefício na praça, quando na verdade ele só saiu do papel por conta da pressão da oposição no Congresso.
Bonner começou bem a entrevista ao perguntar o que pretendia afinal o presidente ao xingar ministros do Supremo Tribunal Federal e insinuar que não respeitaria o resultado das urnas.
Bolsonaro se lambuzou em óleo de peroba para dizer que nunca xingou os ministros da Corte. Foi lembrado de um discurso público no qual chamou Alexandre de Moraes de “canalha”.
A justificativa do presidente é que o apresentador usou a palavra “ministros”, no plural. Portanto, só xingou um em específico, no singular.
Ao ser questionado sobre as lambanças de seus ministros da Educação, entre eles um acusado de montar um balcão de negócios em frente ao MEC, ele se saiu dizendo que, como num casamento, você vai conhecendo as pessoas aos poucos e pode se enganar.
O "engano", no caso, aconteceu após prometer colocar a cara no fogo por Milton Ribeiro. Agora, em rede nacional, o ex-ministro se tornou outro aliado abandonado à própria sorte na estrada.
Moral da história: diante da postura do entrevistado, os 52% dos eleitores que, segundo o Datafolha, dizem nunca acreditar nas palavras do presidente ganharam um total de 0 motivos para acreditar.
Quem está convicto de que Bolsonaro é um enviado divino em sua luta inglória diante de tantos inimigos, inclusive os apresentadores da emissora anfitriã que supostamente o persegue, provavelmente está escrevendo seus tuítes com os pés porque as mãos estão ocupadas em aplaudir.
Difícil pensar que Bolsonaro perdeu algum voto depois da tão esperada entrevista.
Mas é provável que também não tenha levado nenhum.
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