No dia 13 de dezembro de 1968, quando o Governo do marechal Costa e Silva baixou o decreto do Ato Institucional de número 5 (AI-5), o ministro da Fazenda Antonio Delfim Netto justificou seu voto favorável à medida da seguinte forma:
"Eu creio que a revolução veio não apenas para restabelecer a moralidade administrativa neste país, mas, principalmente, para criar as condições que permitissem uma modificação de estruturas que facilitassem o desenvolvimento econômico".
Nesta segunda-feira, quase 51 anos depois daquela data, marcada pela institucionalização da perseguição política e do terror cometido pelo Estado brasileiro durante a ditadura militar (1964-1985), o atual ministro da Economia, Paulo Guedes, reativou essa memória:
"Não se assustem então se alguém pedir o AI-5. Já não aconteceu uma vez? Ou foi diferente? Levando o povo para a rua para quebrar tudo. Isso é estúpido, é burro, não está à altura da nossa tradição democrática", disse ele durante entrevista coletiva em Washington.
Guedes falava sobre os massivos protestos de rua que mergulharam alguns países da América em verdadeira convulsão social. Sobretudo o Chile, onde a população vem colocando em xeque o modelo liberal implantado pela ditadura Pinochet (1973-1990) e que é a principal referência do ministro do Governo do ultradireitista Jair Bolsonaro.
Sobre o risco de um possível contágio dessas manifestações em solo brasileiro, ele pedia que a oposição "fosse responsável" e praticasse democracia.
"Ou democracia é só quando o seu lado ganha? Quando o outro lado ganha, com dez meses você já chama todo mundo para quebrar a rua? Que responsabilidade é essa?", questionou.
Ao ser perguntado por jornalistas sobre a desaceleração do ritmo de reformas econômicas por medo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Guedes respondeu:
"Aparentemente digo que não [Bolsonaro não está com medo do Lula]. Ele só pediu o excludente de ilicitude. Não está com medo nenhum, coloca um excludente de ilicitude. Vam'bora".
Guedes depois ponderou que um novo AI-5 "é inconcebível", mesmo "que a esquerda pegue as armas". Mas a menção ao decreto da ditadura em tom de ameaça vem num momento em que a extrema direita brasileira se arma de instrumentos jurídicos para justificar ações radicais contra eventuais manifestações no Brasil.
Há menos de um mês, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, o filho zero três do presidente Jair Bolsonaro, afirmou em entrevista que, caso os protestos no Chile se repetissem em solo brasileiro, um novo AI-5 poderá ser editado.
"Se a esquerda radicalizar a esse ponto, a gente vai precisar ter uma resposta. E uma resposta pode ser via um novo AI-5, pode ser via uma legislação aprovada através de um plebiscito como ocorreu na Itália. Alguma resposta vai ter que ser dada".
Mesmo desautorizado na ocasião por seu pai, a radicalização segue no horizonte do Governo.
Na última quinta-feira, Bolsonaro enviou ao Congresso Nacional na última quinta-feira um Projeto de Lei que busca isentar de punição os militares, policiais federais e agentes da Força Nacional (formada por policiais de vários Estados) que cometam excessos ou matem durante operações sob o decreto presidencial de Garantia da Lei e da Ordem (GLO).
Nesta segunda deixou claro que sua intenção era também a de reprimir protestos. "Vai tocar fogo em ônibus, pode morrer inocente, vai incendiar bancos, vai invadir ministério, isso aí não é protesto.
E se tiver GLO já sabe. Se o Congresso nos der o que a gente está pedindo, esse protesto vai ser simplesmente impedido de ser feito", disse o mandatário quando entrava no Palácio da Alvorada, segundo reportou a Folha.
O mandatário ainda garantiu que vai enviar ao Congresso um projeto para permitir operações de GLO no campo, para garantir a reintegração de posse de propriedades rurais.
O projeto enviado ao Congresso na quinta-feira foi também assinado pelos ministros da Defesa, o general Fernando Azevedo Silva, e da Justiça, Sergio Moro.
“Não adianta alguém estar muito bem de vida se está preocupado com medo de sair na rua com medo de ladrão de celular. Ladrão de celular tem que ir para o pau”, justificou Bolsonaro na ocasião.
A ampliação do excludente de ilicitude durante operações no âmbito da GLO complementa o Pacote Anticrime enviado por Moro ao Congresso.
Seu texto original previa que os agentes que aleguem "escusável medo, surpresa ou violenta emoção" após matar podem ficar sem nenhuma punição.
Essa parte foi excluída do projeto pelos deputados na Comissão de Segurança Pública da Câmara logo após a morte da menina Ágatha Félix, mas Moro fez um apelo na mesma quinta-feira para que o trecho volte a ser incluído no plenário.
De todas as formas, os policiais já matam impunemente no Brasil. No Rio de Janeiro, estudos e relatórios indicam mais de 90% das mortes cometidas por agentes do Estado não são investigadas ou acabam arquivadas. Entre janeiro e outubro deste ano, as polícias do Rio, comandadas pelo governador Wilson Witzel (PSC), já mataram 1.546 pessoas.
Os dados, divulgados nesta segunda, são do Instituto de Segurança Pública (ISP), autarquia vinculada ao Governo do Estado. Indicam que, a dois meses do fim de 2019, as polícias do Rio já mataram mais que em qualquer outro ano desde que a letalidade policial passou a ser contabilizada, em 1998.
A cifra representa mais de 30% de toda a letalidade violenta do Estado e, mesmo alta, se refere apenas aos casos em que o policial assume ter matado uma pessoa e registra sua versão em Boletim de Ocorrência, alegando sempre troca de tiro ou legítima defesa.
Um Governo com licença para matar
Se o Congresso Nacional aprovar a última medida proposta por Bolsonaro, os agentes que estiverem agindo sob ordem direita do Governo Federal ficarão livres para matar.
Algo que por si só já vem sendo comparado, guardadas as proporções, como possível retorno de ferramentas autoritárias que estavam disponíveis após o decreto do AI-5.
Para o historiador Carlos Fico, professor da UFRJ e especialista em ditadura militar brasileira, o clã Bolsonaro reedita a estratégia do passado de invocar uma suposta ameaça da esquerda.
"O campo progressista está derrotado, sem iniciativa, parece que ainda surpreso com a vitória de Bolsonaro. Não vejo nenhuma ameaça de radicalização [por parte da esquerda]", opinou durante entrevista ao EL PAÍS no início do mês.
Em 1968, quando o AI-5 foi editado, tampouco havia uma ameaça real das forças progressistas. "Houve ações armadas, mas poucas. O AI-5 é do final de 68, um ano de manifestações pacíficas, sobretudo do movimento estudantil. Então, também naquela época, essas manifestações foram usadas como pretexto. E agora nem há nada, não está acontecendo coisa nenhuma", reforça o historiador.
Contudo, Fico argumenta que, ao contrário dos militares linha-dura do regime, Bolsonaro não apresenta embasamento ideológico.
Também não acredita que as Forças Armadas brasileiras estejam interessadas em um novo projeto autoritário de poder.
"Hoje, o presidente Bolsonaro não tem nenhuma densidade ideológica, doutrinária, nada disso. Acho que ele chegou à presidência um pouco por acaso, em grande medida porque foi poupado de uma exposição pública mais intensiva graças ao episódio terrível da facada. Por conta disso, conseguiu não ir a nenhum debate", argumentou.
"Ele vai sendo movido por essa intuição política, que certamente ele tem, muito pautada pelo autoritarismo, violência e despreparo", completou.
As declarações do ministro Guedes geraram uma enxurrada de críticas. "O AI-5 é incompatível com a democracia. Não se constrói o futuro com experiências fracassadas do passado", afirmou nesta terça-feira o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Antonio Dias Toffoli, durante o Encontro Nacional do Poder Judiciário, em Maceió (AL).
Já o presidente da Câmara, o deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), lembrou, em fala ao jornal Valor Econômico, que o AI-5 previa o fechamento do Congresso Nacional e a suspensão de direitos constitucionais, como o Hebeas Corpus.
"Usar [o AI-5] dessa forma, mesmo que sendo para criticar o radicalismo do outro lado, não faz sentido. O que uma coisa tem a ver com a outra?", questionou.
"Você está usando argumento que não faz sentido do ponto de vista do discurso, e como não faz sentido, você acaba gerando insegurança em todos nós sobre qual é o intuito por trás da ação, de forma recorrente, desta palavra [AI-5]", completou.
As críticas vieram também de pessoas que se identificam com o liberalismo econômico idealizado pelo ministro.
"Não tem 'mas', nem 'porém', nem 'todavia', nem qualquer outra conjunção adversativa. Quando, e se, houver protestos a democracia está plenamente equipada para lidar com eles. Nada justifica autoritarismo; simples assim", afirmou o economista Alexandre Schwartsman no Twitter.
"E a máscara do liberalismo caiu. Ninguém vai para governo Bolsonaro por acaso. As ruas estão tranquilas. A cabeça dele não", afirmou a também economista Elena Landau.
Já as declarações de Eduardo Bolsonaro fizeram com que a oposição apresentasse uma queixa-crime no Supremo e instaurasse um processo na Comissão de Ética da Câmara.
"Não se pode punir ninguém por achar ou pensar alguma coisa, mas pelo o que ela faz. Outra coisa muita diferente é fazer propaganda de atos que atentem contra o Estado Democrático de Direito. Foi o que o deputado fez", explicou Fico.
Para ele, Eduardo deve ser punido com a cassação de seu mandato e os ministros do Supremo podem considerar que ele cometeu um crime.
"Não se trata de uma simples opinião, mas um crime, que inclusive é previsto na lei de Segurança Nacional que ainda vigora no Brasil desde a época da ditadura. Ela diz claramente que é proibido fazer propaganda de meios capazes de atentar contra o Estado de Direito, as instituições...", explicou.
Fico ainda opina que, como agravante, as declarações de Eduardo Bolsonaro, o deputado federal mais votado do país, expressam também o pensamento e as vontades do presidente.
E que uma punição seria uma oportunidade de as instituições brasileiras de fato se mostrarem como contrapeso às vontades presidenciais.
"Se continuarem assim, vai se tornar uma atitude de leniência em relação a essas declarações todas, que agora se desbordaram do simples ponto de vista, da simples opinião, para uma situação claramente criminosa", argumenta.
"É um teste importante, porque seria uma forma de afirmação. Mesmo que venha em forma de uma punição branda, uma simples advertência, já seria saudável para o momento atual da política brasileira", completa.
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