O embate entre procuradores da Lava-Jato e ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) parecia ter atingido seu ponto de ebulição quando o ministro Gilmar Mendes chamou os membros do Ministério Público de “cretinos” e “desqualificados” durante uma sessão da Corte.
Na verdade, o conteúdo de uma proposta de delação premiada ainda sob sigilo tem potencial para aumentar muito mais a temperatura do conflito.
VEJA apurou que o empresário Jacob Barata, conhecido como “rei do ônibus” no Rio de Janeiro, envolveu em sua delação o ministro Luiz Fux, do STF, ao informar que um ex-assessor do magistrado teria sido o destinatário de alguns milhões de reais para ajudar a influenciar uma decisão judicial.
A acusação não trazia nenhum outro detalhe, mas os procuradores viram aí uma chance de alcançar um objetivo que perseguem desde os primórdios da Lava-Jato: atingir o STF.( as informações são da veja e Folha de SP).
Acusado de pagar mais de 140 milhões de reais em propinas nas últimas três décadas, Barata começou a tentar um acordo de delação com o Ministério Público do Rio em 2017.
Desde então, seus advogados já redigiram mais de três dezenas de “anexos”, como são chamados os capítulos que resumem os segredos que o colaborador pretende revelar.
Em abril de 2018, apresentaram a primeira leva. O empresário se comprometia a revelar pagamentos de suborno e contribuições clandestinas de campanhas para vários agentes públicos.
Os investigadores não demonstraram maior interesse pela delação porque a maioria dos casos e personagens que Barata desejava delatar já era conhecida.
Os procuradores queriam nomes novos, ou, nas palavras de um dos negociadores do acordo, nomes de “pessoas importantes”, nomes de “autoridades do Judiciário”.
Durante as conversas, o Ministério Público jamais disse qual autoridade do Judiciário estava buscando, mas os negociadores entenderam: era Gilmar Mendes.
Afinal, o ministro fora padrinho de casamento de uma das filhas de Barata e, nos oito meses anteriores, lhe concedera três habeas-corpus consecutivos para libertá-lo da prisão.
Os procuradores, que pediram a suspeição de Gilmar nos processos envolvendo Barata, acreditavam que as ligações do ministro com o empresário iam além de uma festa de casamento.
Mas Barata, mesmo querendo emplacar sua delação para reduzir a pena de prisão, nunca relatou nada que pudesse comprometer o ministro.
Em agosto do ano passado, o empresário e seus advogados fizeram uma nova tentativa de acordo. Informaram que, finalmente, tinham algo que poderia interessar os procuradores.
A história era a seguinte: em 2011, Barata participou de uma reunião do conselho de administração da Fetranspor, entidade que reúne os empresários de ônibus do Rio de Janeiro.
Na ocasião, o então presidente do conselho da Fetranspor, José Carlos Lavouras, disse que precisava sacar dinheiro do caixa da entidade para repassá-lo a um assessor do ministro Luiz Fux.
O objetivo, segundo Lavouras, seria “influenciar” decisões de interesse da Fetranspor.
Só isso. Barata não sabia dizer qual o processo judicial que despertava o interesse da federação, não sabia o montante que teria sido sacado do caixa, nem mesmo se o pagamento teria sido realmente feito.
No fim do anexo, seus advogados informaram que, na época do suposto repasse, o assessor do ministro chamava-se José Antônio Nicolao Salvador.
Mesmo vaga, a história foi reunida em um anexo classificado como “confidencial” e apresentado à Procuradoria-Geral em Brasília. É o “anexo zero” da tentativa de delação de Barata.
Empossado no STF em março de 2011, o ministro Luiz Fux analisou apenas um processo que, aparentemente, poderia ser do interesse da Fetranspor.
Ele discutia se o INSS estava ou não autorizado a cobrar das empresas a contribuição previdenciária sobre o valor do vale-transporte pago em dinheiro.
O STF, um ano antes, havia decidido a favor das empresas, mas a Fetranspor queria que a sentença deixasse claro que a medida era extensiva a quem usava vale-transporte em cartão.
Em dezembro de 2011, quando Fux tinha apenas nove meses de tribunal, o plenário do STF confirmou a sentença a favor das empresas de ônibus por unanimidade.
Especialistas consultados por VEJA disseram que a decisão era totalmente previsível.
Por isso a acusação contra Fux não parece fazer sentido. Afinal, por que alguém pagaria “alguns milhões de reais” para “influenciar” uma decisão que já estava ganha?
De acordo com as investigações da Lava-Jato, José Carlos Lavouras, o sujeito que pediu para sacar dinheiro da Fetranspor, era um dos responsáveis pelo caixa do qual saíam as propinas pagas pela entidade a servidores públicos corruptos.
Em 2017, Lavouras foi preso em Portugal, mas sua extradição para o Brasil foi negada, já que ele tem também cidadania portuguesa.
Como Barata não tem prova alguma do suposto pagamento ao assessor de Fux, a confirmação da história depende agora exclusivamente de Lavouras — que continua vivendo fora do Brasil e não tem planos de voltar ao país, onde é procurado pela polícia.
A Procuradoria-Geral, questionada por VEJA, disse que não vai comentar o caso. Consultada, a defesa de Barata nega que esteja negociando uma delação.
A informação de que um anexo colocava o ministro Fux em situação suspeita chegou aos ministros do STF — e ali produziu a certeza de que a Lava-Jato está investigando.
Em fevereiro, em entrevista à revista Época, Gilmar Mendes disse que um colega do STF estava sendo “chantageado” pelos procuradores, mas não revelou a identidade do ministro.
Era Fux, que conversara com Gilmar depois de ouvir, ele próprio, alguns rumores sobre o conteúdo da delação de Barata. Na conversa, Gilmar, crítico mordaz dos métodos de investigação da Lava-Jato, alertou o colega. “Estão tentando te comprometer”, disse.
E chamou sua atenção para a proliferação de notícias com insinuações de que novas delações realizadas no Rio envolveriam autoridades da Justiça.
Procurado pela VEJA, Fux confirmou a conversa com Gilmar Mendes, disse que de fato ouviu rumores mas garantiu que nunca foi “chantageado”. E completou: “Não se pode sujar o nome de um ministro assim.
O Supremo precisa se unir e tomar uma posição incisiva contra esse tipo de ataque. A Corte e os ministros não podem ser desrespeitados dessa maneira”.
Luiz Fux confirmou que trabalhou com Salvador por mais de duas décadas e que ele chegou a chefiar seu gabinete em Brasília, mas foi afastado em 2016.
A demissão — embora tenha ocorrido cinco anos depois do suposto pagamento da Fetranspor — deixa no ar suspeitas incômodas.
Diz o ministro: “Eu o demiti depois que funcionários denunciaram que ele parecia ostentar um padrão de vida superior ao que o seu salário permitia”.
A VEJA ouviu o ex-assessor. Ele considerou a citação de seu nome no caso “uma viagem”, afirmou que não conhece Barata, não sabe o que é Fetranspor e que ouviu falar de Lavouras apenas pela televisão. Salvador também garantiu que não foi demitido.
“Eu recebi um convite para ir para o Executivo. Esse foi o único motivo da minha saída”, disse, lembrando que tem grande admiração por Fux. “Ele é meu amigo. Tenho o maior carinho por ele. Devo um monte de coisa a ele.”
Há outro caso em que os procuradores parecem ter pressionado um delator a envolver o Judiciário.
Preso em fevereiro de 2018 sob a acusação de corrupção e lavagem de dinheiro, Orlando Diniz, ex-presidente da Federação do Comércio do Rio, contou ter pago mais de 25 milhões de reais para “influenciar” decisões no Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Os procuradores acharam que, finalmente, o nome de algum magistrado seria envolvido, mas, na hora de descer aos detalhes, a delação emperrou.
Diniz afirmou que não efetuou pagamento a nenhum ministro, mas sim a um escritório de advocacia em Brasília, cuja missão seria fazer o trabalho de “influência” no STJ.
O escritório pertence ao advogado Eduardo Martins, filho de Humberto Martins, ministro do STJ e corregedor nacional de Justiça.
Para fecharem a delação, os procuradores queriam que Diniz reconhecesse que o pagamento ao advogado era, na verdade, destinado a Humberto Martins ou a outros juízes do STJ. Diniz disse que não tinha como saber.
A delação melou
Naquela época, o processo de maior interesse da Fecomércio no tribunal se referia a uma disputa pelo comando do Sesc e do Senac do Rio. Diniz obteve uma decisão favorável.
Humberto Martins não participou do julgamento, mas, no dia seguinte, Eduardo Martins recebeu parte dos honorários. Procurado, o ministro disse que não atua em nenhuma causa de seus filhos no tribunal.
Os esforços dos procuradores para chegar ao Judiciário não são recentes. Ex-presidente da OAS, o empreiteiro Léo Pinheiro, condenado a 37 anos de prisão, conseguiu fechar um acordo de delação depois de quase quatro anos de tentativas.
Em 2015, o empreiteiro procurou o Ministério Público pela primeira vez. Ofereceu-se para confirmar, entre outras coisas, a história do sítio de Atibaia, que mais tarde custaria ao ex-presidente Lula uma condenação a doze anos e onze meses de cadeia. Em agosto de 2016, Léo Pinheiro fez uma nova tentativa.
Na época, VEJA tinha revelado que o empreiteiro também entregara um anexo em separado, semelhante ao de Barata sobre o ex-assessor de Fux. O documento informava que o ministro Dias Toffoli, atual presidente do STF, teria recebido um favor da OAS.
Pinheiro contou que, certa vez, enviou uma equipe de técnicos da empreiteira para solucionar uma infiltração na residência do ministro. Quando a história veio à tona, as negociações foram encerradas. O anexo fora apresentado por exigência dos procuradores de Curitiba.
No acordo de colaboração de Léo Pinheiro, fechado recentemente, a citação ao presidente do STF sumiu. No entanto, segundo uma reportagem publicada pelo jornal Folha de S.Paulo, um dos anexos envolve o Judiciário.
O empreiteiro revelou ter pago 1 milhão de reais a Eduardo Martins — sim, o mesmo Eduardo Martins — para que ele conseguisse retirar da pauta de julgamento um processo que envolvia a empreiteira no STJ. O relator do caso, dessa vez, era o ministro Humberto Martins — e a retirada de pauta de fato ocorreu a pedido do ministro.
Esse anexo não constava da proposta inicial de delação de Léo Pinheiro. Ele apareceu durante a negociação do acordo, agora bem-sucedido, entre os advogados e Ministério Público.
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